12 maio, 2015

Creepypasta: OS OBSERVADORES

Me chamo Andrew Erics. Eu morei, um dia, em uma cidade chamada Nova York. Minha mãe se chama Terrie Erics. Ela está na lista telefônica. Se você conhece a cidade e está lendo isso, ache-a. Não a mostre esse texto, mas diga que eu a amo e que estou tentando voltar para casa. Por favor.

Tudo começou quando decidi, por volta dos meus vinte e cinco anos, que era hora de parar de usar mochila para ir ao trabalho. Faria eu parecer mais maduro, pensei, se não ficasse arrastando para tudo quanto é lado uma mochila feito um estudante de ensino médio. Claro que isso significava que teria de desistir de ler no metrô pelas manhãs e fins de tarde, sendo que não conseguiria enfiar meus livros nos bolsos da calça. Uma pasta estava fora de questão, sendo que eu trabalhava em uma fábrica, e maletas a tiracolo sempre pareceram, sei lá, meio idiotas para mim. Pareciam muito com bolsas pro meu gosto.

Eu tinha um mp3, o que me ajudou passar o tempo algumas vezes, mas quando quebrou, -ele desligava no final de cada música, se eu não trocasse manualmente antes-  desisti dele também. Assim, todas as manhãs, me sentava no metrô por meia hora que se arrastavam demoradamente, com nada mais para fazer a não ser observar os outros passageiros. Eu era um pouco tímido, não gostava ser pego enquanto fazia isso, então observava as pessoas disfarçadamente. Curiosamente, descobri logo que não era só eu no mundo que me sentia inconfortável em público.

As pessoas tentam disfarçar isso de várias formas, mas aprendi a ver além disso. Eu os dividia em categorias na minha cabeça. Haviam os inquietos, que não conseguiam ficar confortáveis, constantemente mexendo suas mãos, trocando o peso nas pernas, balançando e mexendo o corpo para perto do banco, e depois voltando para posição inicial. Esses eram o tipo nervoso mais notável. Depois vinham os falso-adormecidos, que  fecham os olhos praticamente no mesmo segundo em que sentam. Entretanto, a maioria desse não dorme de verdade. Os adormecidos de verdade se mexem mais, acordam a cada parada ou com sons altos. Os falsos se desligam do momento em que sentam, até chegarem a sua parada de destino. Depois há os viciados em mp3, o notebook ocasional, os que andam em grupos e falam gritando...  Os viciados em celular ou são muito populares, ou só não conseguem ficar calados por mais de dois minutos.

Assim que a observação de pessoas estava ameaçando a ficar entediante, fiquei de cara com a primeira contradição. Vi um homem que aparentava ser de meia-idade, cabelos castanhos, altura e peso médio e vestido casualmente. Era curioso como parecia quase normal demais.  Não tinha características marcantes, sem maneirismo, como se estivesse destinado a desaparecer na multidão. Foi isso que me fez notá-lo - intencionalmente, eu estava tentando observar como as pessoas agem no metrô e ele não agia de nenhuma forma. Também não reagia. Era como ver uma pessoa na frente da televisão assistindo um documentário sobre peixes. Não estava entusiasmado, não estava envolvido, mas também não desviava o olhar. Estava presente, mas participava.

Ele sempre estava no metrô durante as tardes. Passou mais de um mês de observação de pessoas antes que chamasse minha atenção, porque nem sempre eu pegava o mesmo trem, e também não ia sempre no mesmo vagão. O vi pela primeira vez em uma segunda-feira, acho, e a segunda vez foi na quinta-feira da mesma semana. Obviamente, ele pegou o mesmo trem e sentou no mesmo vagão - no mesmo lugar, até. TOC excessivo? Pensei na época. Por ter me chamado tanta atenção na primeira vez, na segunda observei-o com mais intensidade. Era totalmente inquietante. Ele não fazia nada. Sentava, sem expressão, cabeça reta, não importava o que acontecesse. Uma mulher com uma criança chorando sentou atrás dele, e ainda assim nada. Não virou a cabeça ou fez careta de aborrecimento. E olha que a criança berrava muito alto. 

No momento em que o metrô chegou na minha parada, estava me sentindo enojado, e quando saí do vagão minhas mãos estavam tremendo como se eu estivesse tendo um ataque de nicotina. Algo sobre aquele homem estava "errado".  Ele era, pensei, algum tipo de aberração. Psicopata, talvez, um daqueles caras tranquilos que acabam por armazenar uma dúzia de cabeças em seu freezer, a primeira vítima a própria mãe.

Me encontrei vadiando de tarde depois do trabalho,parando para dar uma olhada nos quiosques perto do metrô, mesmo que não tivesse a intenção de comprar nada. Por algumas semanas eu evitei pegar aquele trem, e quando me peguei entrando nele, fazia questão de escolher o vagão mais longe possível do que ele ficava.

Então, em uma manhã, eu vi outra pessoa que me alarmou do mesmo jeito.

Uma mulher, também de aparência simples e fora de lugar,  da agitação ao seu redor. No momento em que a reconheci, percebi depois, foi aonde minha obsessão começou. Minha observação de pessoas, que começara como um hobby para espantar o tédio, começou a tornar-se quase como uma religião para mim. Não podia entrar em um trem ou ônibus sem me pegar examinando todos presentes, preenchendo uma lista mental.  Roupas lisas de cores sólidas, sem marca? Confirma. Sem expressão, sem olhadas casuais aos outros passageiros ou pela janela? Confirma. Sem bolsas, mochilas ou acessórios? Confirma. Confirma. Confirma, temos outro. Comecei a chamá-los de os Estranhos.

Não os via todos os dias, mesmo quando comecei a usar o metrô mais do que o necessário, mesmo quando me encontrava andando de ônibus que não iam para minha casa, nos finais de tarde. Mas eles estavam presentes com frequência. Ver um deles me fazia ranger os dentes, suar as palmas da mãos e minha garganta secar. Se você já teve que falar na frente de uma sala cheia, sabe qual é a sensação. Mesmo que não me dessem nem uma breve atenção, me sentia exposto à eles. Eu os via, claro como o dia. Como eles não me notavam?

Eventualmente quando minha curiosidade sobrepôs meu medo, decidi seguir um deles. Escolhi aquele que tinha visto primeiro, o homem do metrô da tarde que sempre usava o mesmo assento. Entrei e me sentei atrás dele. Viajamos até o fim da linha, ele levantou e saiu antes de mim. Mantendo distância entre nós, o segui, mas ele não foi longe. Se sentou em um banco ali perto, inexpressivo como sempre e eu virei em uma esquina e esperei, tentando parecer indiferente. Depois de alguns minutos, o próximo trem chegou na estação, e o vi entrar e sentar no mesmo assento novamente. Não consegui encontrar coragem para segui-lo de novo.

Ele não tinha ido pra lugar nenhum! Ele apenas tomou o metrô até o final da linha, e depois o que? Voltou? Que razão ele teria, qualquer um teria, para fazer isso? Ele continuava a me incomodar, mesmo depois de ter voltado pra casa e estar tentando descansar. Não conseguia deixar isso pra lá, não enquanto não fizesse sentido. Me encontrava mais do que confuso - estava realmente irritado agora. Por que esse desgraçado estranho, esse pessoa quase desumana, viajava em trens pra lá e pra cá, indo para lugar nenhum? A mente, uma vez li, estia perante certas coisas, porque a própria visão daquilo já é uma afronta. Aranhas liberam essa sensação, principalmente as grandes e peludas, em muitas pessoas. Apenas parecem erradas para nós, extraterrestre. Esse era o efeito que os Estranhos começavam a produzir em mim. Ofendiam meus sentidos.

No dia seguinte o segui novamente, e novamente no dia seguinte. Todos os dias, por pelo menos uma semana, nós dois fizemos nossas viagens silenciosas, pensando que só eu sabia sobre. No final da semana, estava o seguindo fazia horas, até que o último trem parou na estação que fica perto do meu apartamento. Viajamos do fim de uma cidade até outra, e então viajamos de volta. Eu não era mais um observador de pessoas. Eu era um observador de Estranhos. Não tinha olhos para mais ninguém, embora, perifericamente, notei mais de um olhar confuso enviados em minha direção. Fora isso, nós dois poderíamos ser as únicas duas pessoas no planeta, era o que me importava.

Fui demitido na semana seguinte. Minha gerente era bondosa, tímida mas firme. Eu não estava me concentrando, não tinha foco. Não estava sendo nem perto de produtivo. Foi um grande sermão, acho, mas mal ouvi uma palavra. Tudo que pensava era sobre meu novo trabalho, minha vigilância. O que aquele homem, não, aquela coisa do metrô fazia quando eu não estava o observando? Saí do trabalho pela última vez ao meio-dia. Normalmente eu começava a segui-lo as  cinco e meia da tarde, mas eu tinha certeza que ele estaria lá, esperando por mim. Desejava, hoje, ter prestado mais atenção naquele dia. Estava ensolarado? Era verão, afinal. Eu podia ter dado uma volta pelo centro, talvez ter conhecido uma bela garota. Podia ter tomado um ice cappuccino e fumado um cigarro em um cafeteria ao ar livre e depois ter ido para casa, tirar da cabeça a obsessão que só crescia. Conseguir um emprego novo e voltar a ler nas viagens de trem e ônibus.

Em vez disso, esperei. Mais do que um trem vão para cima e pra baixo nas linhas, então me sentei na estação por mais ou menos uma hora até que o vi através de uma janela. Enquanto andava em direção ao vagão percebi que pela primeira vez minha pele não estava úmida, minhas mãos não tremiam, meu coração não estava acelerado. Me sentei, pela primeira vez, bem na frente dele, diretamente em sua linha de visão. Observei por uma mudança no rosto, será que ele me reconheceria? Se o fez, não vi sinal disso, e eu estava olhando vigorosamente. Devíamos formar um par e tanto, sentado de frente um pro outro naquela tarde, olhando diretamente um nos olhos do outro. Foi difícil não mostrar a raiva crescente em meu rosto, mas com um pouco de esforço dei um jeito de ficar tão sem expressão quanto ele. Por dentro, estava gritando para ele. Reaja, seu merda! Me olhe, desgraçado! Eu te conheço pelo o que você é!

Mas não gritei e minhas exigências silenciosas não foram respondidas; não na primeira viagem, na segunda, na terceira ou na décima. Viajamos juntos até tarde da noite, e a cada ponto final nós descíamos e esperávamos.  Sentei bem ao seu lado no banco, observando-o de canto de olho e ainda assim não conseguindo nada dele. Mas os dois podíamos ser jogadores.

Finalmente fizemos nossa última viagem juntos. Eu o tinha na palma da mão e sabia disso. última viagem da noite antes que o metrô fechasse. Eu sempre deixava-o escapar nesse momento, pois a última para é muito longe da minha casa, e os ônibus param de funcionar na mesma hora que o metrô. Mas desta vez, eu o seguiria, finalmente veria o que ele era quando os trens paravam de circular. Talvez teria até respostas.

O trem andava, a expectativa crescia em mim. O vagão ia se esvaziando lentamente a nossa volta, até que éramos só nos dois, viajando silenciosamente pela cidade. Lutei para não expor um sorriso maníaco no rosto, e o trem lentamente foi parando, então parou. O fim da linha.

O Estranho não se mexeu, ainda sem reagir a nada. O vagão continuou parado, com as portas abertas. Eu mal podia ouvir os últimos passageiros fazendo seus caminhos pela estação atrás de nós, pegadas ecoando no silêncio. Nada. O sistema de alto-falante apitou para alertar qualquer pessoa adormecida que tinha chegado na última estação. Nada ainda. E finalmente, pude ouvir mais pegadas. Um vigilante ou algo do tipo, colocando a cabeça para dentro dos vagões para ter certeza que todos tinham saído antes do trem ir para o estacionamento ou sei lá pra onde. Não tirei os olhos da minha presa silenciosa.

Consegui ver o vigilante pelo canto do olho quando ele finalmente chegou em nosso vagão. Olhou para dentro, seus olhos em nossa direção e uma expressão confusa tomou conta de seu rosto. Ele piscou algumas vezes e depois parou. Esperei que ele falasse, mas então, balançando a cabeça lentamente, foi embora. Havia mais um carro à nossa frente, o ouvi parar e verificar e alguns segundos depois as portas se fecharam e o trem começou a se movimentar de novo. Viajamos por algum tempo, e depois demos uma volta e o trem foi estacionado. Eu podia ver pela janela mais trens nos ambos os lados, e pelas janelas desses mais alguns.  

Em seguida ele sorriu para mim. Era apenas uma pequena curvatura em seus lábios, que passaria despercebida se eu não tivesse passado as últimas horas observando-o e estudando intensamente seu rosto. "Bem," disse em um tom duro e profundo "Aqui estamos."

Tentei responder mas não consegui na hora. Minha garganta tinha se fechado. O medo se apossara de mim. Senti como se toda a caverna subterrânea onde estávamos tivesse desabado sobre mim. Tossi, gaguejei e finalmente dei um jeito, com uma voz rouca, de perguntar a questão que tinha me mantido várias noites acordado, quase me levado a loucura e me guiado ao lugar que estava no momento. "O que você é?"

Me ignorou. Se levantou e as portas do trem se abriram. Então, surpreendentemente, virou o rosto em minha direção. "Você vem?" Não esperou minha resposta, só andou em direção à plataforma. Corri para segui-lo. "Vamos, porra!" Gritei. "Fale comigo. Quem é você? O que é? Por que você anda de trem o dia todo?" Ele não olho pra mim, nem diminuiu a velocidade. Não consegui ver seu rosto, mas fico seguro em dizer que ele não reagiu de nenhuma forma, não mais do que anteriormente. Andei logo atrás dele, ainda gritando por algum tempo, mas eventualmente desisti. Cinco palavras eram apenas o que eu conseguiria tirar dele, presumi.   

Andamos ao longo na plataforma até chegarmos a um cruzamentos, então viramos. Agora estávamos perpendiculares aos trens que nos rodeavam. O caminho a frente estava iluminado de cima, mas eu não conseguia ver seu fim. Os trens também iam longe, não conseguia dizer até aonde. Trens demais para uma cidade só, percebi. Naquele momento não importou muito, achei, mas provavelmente eu devia ter prestado mais atenção.

Não sei por quanto tempo andamos. Tive um relógio uma vez, mas não usava mais pois estava quebrado. Peguei meu celular em um momento, mas não havia recepção lá em baixo, tudo que aparecia na tela era um grande "Sem sinal". O Estranho parava de vez em quando por um minuto ou dois, olhava par um vagão mas em seguida continuava. Demorei um tempo para entender porquê, mas eventualmente vi que não eram iguais. Longas filas deles eram iguais, então apareceria de repente um modelo diferente. Era um pouco maior ou menor, ou teria uma forma um pouco diferente. O gabinete, ou seja lá como você chama a parte da frente onde o condutor fica, eram superficialmente diferentes também. Eu não sabia e ainda não sei o que ele estava procurando, mas eventualmente deve ter achado, porque voltamos, e as portas do trem se abriram quando meu guia improvisado parou na frente delas. Entramos e nos sentamos.

"Está disposto a falar agora?" Perguntei a ele. Sem resposta. Suspirei em frustração e ponderei por um tempo os prós e contras de socá-lo na cara, quando de repente as luzes do vagão se ascenderam e ouvi o motor ligar. "Que porra é essa?"

Ele me olhou de uma forma que quase parecia tristeza. "Você não conseguirá voltar."

"O que você está falando? Voltar para onde?" Nada. Aquele recluso maldito! O trem entrou em movimento, indo na direção oposta da que tínhamos vindo. Pensei. A parada infinita deles me fez perder o sentido de direção. Viajamos por alguns minutos e então começou a parar quando estávamos perto da parada. Seu olhar vago começava a ficar mais nítido e pela primeira vez tive a impressão que estava realmente olhando para mim, ao invés de estar olhando casualmente para a direção que eu me encontrava.

"Fique parado, fiquei quieto. Não chame atenção."

O trem parou, as portas abriram e eles começaram a encher o vagão. Não sei o que notei primeiro - as roupas estranhas, os braços compridos com mãos que arrastavam no chão, os olhos negros injetados e rostos angulares ou o tom de pele azul acinzentadas. Meus olhos absorveram todos aqueles estímulos, mas por um longo segundo meu cérebro se recusou a processá-lo, e quando finalmente o fez, quase não consegui segurar o grito que tentou irradiar de minha garganta. Achei que meu coração fosse explodir. Inferno, achei que EU ia explodir. Me sentia como a corda de um violão dedilhado, tudo dentro de mim balançava e latejava. Minha visão ficou nublada, o que foi até bom, e então vomitei. Minha boca estava fechada com força e me forcei a engolir de volta, quase não conseguindo. Meu instinto gritava comigo mesmo - Fique parado! Fique quieto! Não chame atenção!

Aquele dia ficou nublado em minha mente. Viajamos para cima e para baixo na linha do metrô, ainda sem expressão, por horas, por dias talvez. Parecia muito maior do que a linha que eu conhecia, a que usara para seguir o Estranho. As coisas horrorosas a nossa volta pareciam não prestar atenção na gente, embora forçávamos ficar retos. Eu estava tão petrificado de medo que quando finalmente retornamos para a caverna infinita de trens, sozinhos, explodi em lágrimas. Caí no chão e fiquei chorando por muito tempo, o Estranho me olhando, impassível.

Quando me acalmei e consegui me controlar de novo, olhei para ele, implorando. "Me leve para casa," Guinchei. "Por favor."

"Não posso," disse. "Não sei qual desses levariam você de volta para casa, se é que algum o faria." Ele levantou e andou em direção à plataforma, me levantei cansado e o segui. Ele se virou bruscamente. "Acho que você já me seguiu o suficiente."

A raiva que eu sentia por ele, o pânico que já tinha enterrado, ressuscitou. "O que?" Gritei, acelerando o passo. Agarrei-o pelos ombros com uma força intensa que nem sabia que existia em mim, batendo as costas dele contra um vagão. "Seu maldito filho da puta, que merda você fez comigo?" Bati-o de novo e de novo. "Me leve de volta!" Ele suportou tudo passivamente, e logo o surto de raiva sumiu de mim, me deixando vazio. "Por favor", implorei. "Por favor, me leve para casa."

"Não é assim que funciona." Ele disse. "Se ficarmos juntos, é mais fácil de sermos notados. Busque seu próprio caminho. Fique parado e seja sutil, e eles acharam que você é um deles."

"Como você pode fazer isso comigo? Por quê?"

Me olhou novamente, de um jeito que parecia quase triste. "Eu tive. Você terá. Você fica... preso, as vezes." Tirou minhas mãos de seus ombros, e se virou para ir embora. Caí de joelhos de repente, sem forças, e o vi partir. No cruzamento ele virou o rosto pra trás e me olhou. "Me desculpe." Então tinha sumido.

Fiquei lá, nos azulejos gelados, por um bom tempo. Me encolhi em posição fetal e chorei por um tempo. Quando já não havia mais lágrimas em mim, dei um jeito de dormir um pouco. Quando acordei, o trem que eu tinha vindo havia sumido - carregando mais abominações azul acinzentadas para seja lá onde abominações azul acinzentadas vão. Não conseguiria entrar lá de novo, de qualquer jeito.

Tentei encontrar o lugar da onde havia começado, para achar um trem que reconhecesse, mas não estava nem certo de que direção eu tinha que tomar. Andei por uma hora, depois outra. Finalmente achei um que parecia familiar. Ou estava desesperado o suficiente para achar que tinha. Quando me aproximei da porta, ela se abriu para mim e eu me sentei. O trem começou a andar. Apesar de ser agnóstico, rezei com todas as minhas forças. Parou, as portas se abriram, e por um momento achei que estava a salvo. Pessoas! Seres humanos! Acabara de me tornar o cara mais devoto do planeta!

Então notei os olhos. Especialmente o terceiro, um olho grande, bem no meio de suas testas. Ah,  então vá se foder, Deus, pensei.

Entretanto, esses eram mais fáceis de aturar do que o outro grupo, e fiquei grato por isso. Mas o terceiro olho piscava em momentos separados dos outros dois e isso me dava náuseas. Quando um deles sorria, ria ou falava com outros, não podia não notar que seus dentes eram afiados, disformes e amarelo-esverdeados de sujeira.  Mas fui cuidadoso e seletivamente cego, consegui fingir por um tempo que me sentia em casa. Até que um deles entrou com um sanduíche em mãos, e percebi que estava faminto pois não havia comido ou bebido fazia dias.

No próximo terminal que paramos, decidi tentar encontrar algo para comer ou beber. Não sei por que esperei, mas parecia importante - ir até o fim da linha. Cheguei lá e quase não consegui sair. Nunca tinha visto o Estranho sair do subsolo - Nunca tinha o visto comer ou beber, também. Entretanto, meu estomago não aceitava não como resposta. Me preparei, tentando manter meu rosto cuidadosamente neutro, e fiz meu caminho para fora da estação. E foi ai que fiquei confuso.

Estava procurando por escadas, elevadores ou algo do tipo, mais tudo que eu via eram buracos no chão, parede e teto. Escancarados, buracos de tamanhos diferentes, como se estivesse no meio de uma colméia. O que eu deveria fazer? Saltar em um? Não fazia sentido para mim, não até que alguém saiu de um. Ele flutuou até o chão e em seguida flutuou por mim. Ele franziu a testa por um segundo, pelo menos acho que foi isso, provavelmente um olhar repreensivo, mas aparentemente o que impedia deles me reconhecer como alienígena, estendia só até aqui. Bem, eu não conseguia levitar e essa era a única forma de sair daquele metrô que parecia uma colméia. Resmungando, fiz meu caminho de volta para o túnel.

Eu estava irritado, perdido, com fome e tinha sido abandonado em um destino que, se não era pior que o inferno, era pelo menos duas vezes mais idiota e três vezes mais sem sentido. Não estava no melhor estado de espírito, por isso me dei direito de usar de pretexto por esse erro. Normalmente, ando por lugares espaçosos, porque todos sabem que se você faz a curva pelos cantos em um lugar público, as chances de você esbarrar em alguém são realmente grandes. Como eu fiz. Esbarrei em alguém, uma mulher, e caí no chão. Sem pensar, reagi como qualquer Nova-iorquino reagiria - muito mal. "Puta merda, sua vadia estúpida! Olha por onde anda!"

Percebi meu erro antes que ela. Seus olhos ficaram intrigados e confusos e quando ela realmente percebeu, eles se arregalaram em pavor. Deu um pulo - bem, flutuou rapidamente - para longe de mim e deixou escapar algo como um grito. Um pouco mais miado do que eu estava acostumado, mas entendi o propósito. Logo atrás de nós, vi cabeças alienígenas com três olhos virando em nossa direção. De repente, pensei naqueles dentes pontiagudos e sujos, e assim por dizer já estava correndo. O trem não estava na estação, mas havia uma passarela ao longo do túnel - para os reparadores, assumi. Pelo menos de onde eu venho, é para isso que serve. Corri o mais rápido que pude, e continuei a correr até que cada vez que respirava, parecia que estava sendo apunhalado. Parei, ofegante, e olhei para trás. O túnel tinha curvas, então não conseguia ver mais nenhuma luz, e ninguém parecia estar me seguindo. Entretanto, voltar não era uma opção.

Continuei na escuridão por um bom tempo. Eventualmente passei por uma pequena abertura na parede, e parei lá para descansar. Fome, desespero e uma corrida apavorada tinham me deixado absolutamente esgotado. Provavelmente teria chorado de novo, o que parecia ser a única coisa que eu era capaz de fazer nos últimos dias, mas parecia ser apenas perca de tempo. Sentei contra a parede, pernas abertas e me imaginei batendo com um martelo naquele maldito Estranho até a morte. Era uma imagem agradável.

Um rato se arrastava por ali no escuro. De vez em quando eu balançava o pé para assustá-lo para longe, mas depois de um tempo não me importei mais com isso. Raiva, leptospirose ou qualquer outra doença que ele tivesse carregando seria uma benção comparado com a viagem infinita pelos metrôs de estranhos mundos, perdido, desiludido e sozinho. Quando se aproximou de mim de novo, não o espantei. Mesmo quando chegou perto e encostou na minha perna, não me importei. Não até que um trem passasse por ali, e as luzes dos vagões iluminaram o bueiro que eu me encontrava e a coisa que achei que era um rato.

Sim, era parecido com um rato, mas não tanto quanto era parecido com uma aranha. Se houvesse uma cruza entre essas duas espécies, a abominação resultante talvez seria tão horripilante quanto a coisa tocando-me na perna. Gritei, me levantei em um pulo e chutei aquela coisa nojenta na parede oposta. Ele fez um barulho doentio, e fiquei observando ele se contorcendo antes do último vagão passar e a escuridão tomar conta.

E na escuridão, um pensamento horroroso passou pela minha cabeça. Me perguntei se aquilo seria comestível. Eu não queria, e senti ânsia só de imaginar, mas estava faminto e não havia garantia de que comeria nesse lugar ou algum dia de novo. O Rato-aranha era minha única opção. Me segurei o máximo que pude, mas no final, a sobrevivência tomou conta. Tinha comigo meu isqueiro, mas nada no que por fogo. Peguei carne de sua carcaça e cozinhei um pouco, segurando logo acima da chama, mas isso não ajudou muito. Nada ajudaria. A carne era repugnante, mais repugnante do que qualquer coisa que você possa imaginar. Eu já estive desesperado por comida antes, e comera muitas coisas questionáveis, mas nada era não ruim quando o rato-aranha era.

Analisando, foi nesse momento em que virei um Estranho. Antes, eu tinha lutado para ficar inexpressivo como o outro. O que achava ser calma e torpor. Uma pedra afiada jogada  nas águas de um rio, depois de várias vezes, ficará com as pontas arredondadas, e o que eu tinha passado fizera o mesmo comigo. Me foder e comer monstros no escuro, de baixo de um mundo alienígena, suavizou minhas pontas. Quando saí da escuridão e voltei para o túnel, estava tão inexpressivo quanto aquele que tinha me levado ali.

Mas isso não foi o pior de tudo. O pior veio depois, a primeira vez que fiquei preso. O Estranho tinha mencionado sobre, mas no estado que me encontrava, mal tinha notado. Uma noite, no fim da linha, me pediram para sair do trem. O mundo era um dos mais perto-do-normal. As pessoas eram quase humanas, pelo o que me lembrava. Eram laranjas, claro, e corcundas, mas além disso, eram praticamente normais. Depois do último mundo, onde os seres eram enormemente obesos, hermafroditas com seis seios e sem nariz, os caras laranjas eram muito bonitos pra mim.

Saí do metrô, porque estava claro que não voltaria para o ponto central (o que ante chamava de linha infinita de trens) naquela noite. Ou nenhuma outra noite, logo descobri. Seja lá o que me deixava passar despercebido, agora não funcionava mais. Considerei, brevemente, ficar. Mas esse lugar não era minha casa, e nunca seria. Mesmo com que eles parecessem comigo, a cultura era muito diferente. Essa tinha sido uma lição que aprendera antes. Mesmo em mundos em que as pessoas eram idênticas a mim, eu estaria em perigo. Uma vez estava em um lugar onde as pessoas se pareciam comigo - bem, na verdade pareciam Indianos, mas isso era o mais perto que já estivera de casa - e aprendi da maneira mais difícil que o gesto que para mim significava "Olá", lá era um grande insulto. Insulto suficiente para ser espancado quase até a morte enquanto uma multidão olhava com aprovação.

Além disso, mesmo que aquele lugar tivesse uma cultura que eu pudesse me adaptar, não gostaria de ficar. Queria uma das duas coisas: encontrar o caminho de casa ou encontrar o Estranho que tinha me colocado aqui e bater pra caralho nele. O resto não servia.

Então, eu queria seguir em frente. Mas não estava certo se conseguiria fazer com alguém o que aquele maldito tinha feito comigo. Poderia forçar alguém a andar o eterno subterrâneo como eu? Descobriu-se que não precisaria. Depois de alguns meses um deles me notou e, sim, começou a me seguir por semanas. Cuidadosamente fiz parecer com que eu não o via, assim como Estranho tinha feito. Mas estava dividido entre a vontade de avisá-lo e o desejo de trazê-lo para o fim da linha para que pudesse sair logo de seu mundo sombrio.

Na última noite ele me seguiu até o fim da linha, assim como um dia eu tinha feito. Entretanto, não conseguira criar coragem para sentar à minha frente. E assim que o trem parou na última estação, ele saiu. Esperei, achando que o condutor não me veria e poderia continuar, mas não obtive sucesso. Saí do vagão, o trem partiu sem mim e eu xinguei tudo e todos por dentro. Enquanto caminhava em torno da bilheteria, o jovem que havia me seguido, atacou. Tinha consigo uma faca curvada. Deveria ter me pego de surpresa, mas eu estava viajando por mundos alienígenas hostis fazia muitos anos. Meus reflexos estavam afiados.

Nós lutamos, violentamente, até que consegui tirar a faca dele. Não sei como ela foi parar em seu pescoço. Não acho que eu queria matá-lo. Eu nem estava com muita raiva, lembrando-me como tinha estado a alguns anos atrás. Depois, enquanto ele estava deitado lá, sangrando, fiquei puto. Chutei-o repetidamente, gritando. "Seu bosta! Você deveria..." Chute. Chute. "Ter me seguido!" Chute. Fugi da cena do crime, mas não por muito tempo. Estava lá no começo do dia, para pegar o primeiro trem da manhã. E naquela noite, quando viajei até o fim da linha, fiquei novamente invisível para o condutor. Acho que você pode matá-los ou trazê-los com você para o fim da linha para retornar ao ponto central. Não faz diferença.

Estava invisível de novo, mas ainda estava laranja e corcunda. Fiquei desse jeito até ficar trancado de novo. Desta vez matei de propósito. Foi muito mais rápido. Não esperei que ela me seguisse. Uma vez que era reconhecido como um Estranho, reconheceria a pessoa como o próximo, e fiz minha escolha. Não levaria mais ninguém para aquele buraco.

Me faz pesar sobre o Estranho que me introduziu aqui. Me pergunto como ele se parecia originalmente, e se sabia que poderia ter me matado. Me pergunto, também, dos outros que vi onde eu morava, e os raros que passei por desde que estou aqui. Eles matam ou levam? E seja lá qual opção escolhida, consideram isso errado? Não consigo falar com eles, perguntar. Estamos ferrados de qualquer forma, e os ferrados tem de sofrer sozinhos.

Já matei 15 deles agora, e me tornei muito bom nisso. Mas fiz uma decisão. Chega de matar - inocentes, pelo menos. Antes de voltar para o ponto central, enchi uma mochila com bastante papel, e escrevi essa história. Escrevi muitas, e muitas. Para deixar em quantos trens eu puder. Isso é um pedido, e um aviso.

Meu pedido é que encontre minha mãe e conte uma mentira à ela. É uma mentira branca, não se preocupe. Diga para ela que eu a amo, e que estou tentando voltar para casa. Talvez dê a ela um pouco de esperança, ou paz de espírito. Queria que isso fosse verdade, também. Mas eis o seguinte: Tenho pensando em mim como Ulisses, perdido e sem rumo, tentando voltar para costas familiares. Mas não estou perdido no mar. Estou perdido nos túneis infinitos - o labirinto. A diferença é importante, porque labirintos são projetados, construídos. Algo ou alguém fez esse lugar impossível. E esses devem ser responsáveis pelo o que fizeram comigo. Eles me botaram como Teseu, não Ulisses, mas eu não interpretarei esse personagem, também. As estranhas regras desse lugar me transformaram de ser humano para outra coisa, e depois outra de novo. Me fizeram um monstro, então serei o Minotauro desse labirinto. E se puder, vou destruí-lo a minha volta, e aqueles que o construíram.

Meu aviso é que você deve ser muito cauteloso em lugares públicos, caso vejo homens ou mulheres muito silenciosos ou inexpressivos. Mantenha distância. Eles podem te matar, ou fazer pior. E mais importante, te aviso, te imploro:  não viaje de trem até o fim da linha.