O voo de São Paulo a Porto Alegre levou o dobro do tempo, devido a uma forte neblina – o que pra mim foi ruim, pois ainda precisava pegar um ônibus para Pelotas.
Usei um taxi do aeroporto até a rodoviária, cruzando uma cidade adormecida pela noite fria.
Na rodoviária, comprei a última passagem. Fumei um cigarro e embarquei, dirigindo-me a poltrona "23".
Peguei o celular e liguei o rádio deixando em volume baixo, apenas para relaxar.
Havia poucos passageiros neste horário: duas senhoras bem gordas, uma adolescente nariguda, um careca engraçado, um casal feio e um jovem executivo magrelo.
(Se me vissem falando assim, poderiam acreditar que sou um baita exemplar estético, mas não... Sou nanica de pele pálida. E, como se não bastasse, minha magreza costuma me enviar diretamente ao departamento infanto-juvenil das boutiques ).
Talvez o fato de trabalhar com cirurgia plástica me induza a observar as pessoas com um olhar mais crítico.
Estávamos quase saindo quando a porta reabriu. Entrou um homem alto, vestindo um moletom preto com capuz. E, embora fosse noite, ele usava óculos escuros. Sentou no fundo do ônibus, imaginei que nunca mais fosse vê-lo.
Adormeci.
Acordei com um ruído no ouvido que me causou aflição, mas não passava do radio sem sintonia.
Já estávamos na estrada – eu não sentia o movimento do veículo – quando olhei pela janela e só via uma paisagem escura e silenciosa de muito mato.
Levantei-me e a luz de leitura da poltrona "27" acendeu: era a adolescente nariguda.
Olhei para frente, todos dormiam.
Olhei para o fundo, o banheiro estava ocupado e, sentado na poltrona ao lado, o homem de capuz.
A jovem me perguntou o motivo da parada, então comentei que eu havia dormido e não sabia.
Ela sorriu e confessou o mesmo.
Resolvi falar com o motorista, passando pelos demais passageiros que dormiam.
A cabine vazia e a porta aberta. Saí para procurá-lo. A nariguda me seguia, mas parou ao pé da porta – este era o limite de sua coragem. Gritei chamando-o de “motorista”, uma vez que nem sabia o nome dele ou como ele era – não me recordava de sua fisionomia.
Gritei mais uma vez e obtive uma resposta excêntrica: um mugido.
Rimos da cena.
Acabei deduzindo que ele poderia estar no banheiro.
Voltei e fui surpreendida por um som estranho: algo grande parecia se arrastar no mato e aquilo logo foi seguido por dezenas de mugidos. Então dei de cara com o motorista voltando do ônibus: um sujeito magro, aparência doente, com um boné azul.
Questionei se ele estava bem e ele respondeu somente com um aceno de cabeça – “Dor de barriga”, eu imaginei – Voltamos, o banheiro continuava ocupado agora o sujeito misterioso não estava mais em seu acento.
Já os demais ainda dormiam.
Ela puxou uma mochila e se aproximou do meu acento.
Perguntou, educadamente, se eu me importava, e respondi que não.
Ela se apresentou como Clara e eu lhe disse meu nome. Conversamos um pouco, enquanto o ônibus partia. Descobri que tinha quinze anos e morava com a mãe em Porto Alegre. Estava a caminho de Pelotas, passaria dez dias com o pai. Falei pouco de mim, não por antipatia, somente por não ter chance.
O ônibus dava socos e tropicar, o que não dei muita importância, sabendo da fama das estradas no Brasil.
Só que Clara, por estar mais familiarizada com a rota, imediatamente abriu a cortina e levou à mão a boca, soltando um palavrão.
Olhei: estávamos em meio ao mato.
Sentimos mais dois socos e uma freada brusca.
O motor desligou e as luzes internas se apagaram por completo – exceto pela que indicava "banheiro ocupado".
Todos se levantaram apreensivos. Uma das gordas gritou ao ver onde estávamos. Instintivamente Clara segurou minha mão e falei para ela ficar próxima a mim. O sujeito careca foi até a cabine do motorista. Mal forçara e a porta abriu vagarosamente.
Surpreso, ele retornou nos informado que o motorista não estava lá.
Então uma das gordas indagou: “Como um “negrão” daquele tamanho some assim?”.
Naquele instante minha espinha congelou e Clara apertou minha mão com força.
Eu só vira o motorista na parada que havíamos feito uma hora atrás, pois no momento do embarque eu entrara apressada, já tinha gasto muito tempo fumando.
Perguntei a Clara se ela tinha visto o motorista antes e ela respondeu que não, pois fora sua mãe quem despachara a bagagem.
O sujeito de terno nos questionou assim que percebeu nossa conversa.
Contei a todos sobre a parada, do motorista branco de boné, e comentei que achava que este estava no banheiro.
Acreditava que o sujeito esquisito de capuz e óculos escuros havia se passado pelo motorista.
Então o homem do casal me interrompeu dizendo que isso não fazia o menor sentido.
No entanto, imediatamente todos ficaram em silêncio e olharam em direção a porta do banheiro, que se mantinha ocupada
O sujeito magro de terno tomou a iniciativa e foi até a porta do banheiro. Ele a forçou, mas estava trancada. Com a ajuda dos homens a tranca finalmente se rompeu.
A porta abriu e, como por encanto, a luz do ônibus retornou para atormentar nossos olhos, protegidos pelo zelo da escuridão que nos mantivera ignorantes.
Havia um buraco grande na janela e lá estava o motorista encolhido no chão imundo. Não havia mais rosto, apenas um pedaço de cabeça, algo como uma maçã devorada pela metade em uma única e faminta dentada. O que fizera aquilo possuía uma mandíbula gigantesca.
Aqueles de estômago mais fraco, nos quais não me incluo, tiveram problemas para evitar passar mal.
Acalmei Clara na poltrona, observando a agitação de todos.
Jonatas, que era casado com Eveline – o casal feio –, tentava acalmá-la em vão, ela estava histérica.
Inutilmente, as gordas procuravam rede nos celulares em meio ao nada.
O magrelo olhava pensativo para a única porta do veículo.
Estava "armado" com um guarda-chuva, mas eu sentia que ele seria o primeiro a nos abandonar.
O senhor careca que se apresentou como o veterinário Júlio, sentou-se abatido a nossa frente.
Permanecíamos em silêncio à espera de uma explicação.
Ele sacudiu a cabeça negativamente e insisti que desse um palpite.
Olhou-me com seriedade e repetiu que não tinha ideia, mas que se fosse outro ambiente arriscaria ser um Tubarão.
Jonatas debochou e Júlio, irritado, iniciou uma discussão.
Gritei para que parassem e, até mesmo Eveline se aquietou um pouco.
Aguardamos um tempo e Miguel, o magrelo, ficou de guarda na porta.
Havíamos concordado que deveríamos procurar ajuda na estrada, mas ninguém se candidatou, mesmo porque não sabíamos para onde ir. Clara dormia e eu quase cochilei ao seu lado, quando Miguel gritou que avistara algo.
Na verdade ele ouvira algo, mas não era preciso explicar, pois agora todos ouviam.
A impressão era que algo grande, como um avião, se arrastava na escuridão, acompanhado de centenas de mugidos e um som tenebroso de lamentação, choro e sofrimento interminável. Fiquei com a impressão de ver poeira levantando da terra, como se algo se movesse a nossa volta. Miguel e Jonatas falaram em pares de olhos: diversos e de diferentes cores e tamanhos. Senti muito medo na hora e voltei para junto de Clara. Sentia-me responsável pela guria e, de todos que estavam ali, era com quem mais me familiarizara.
Miguel voltou correndo, horrorizado e pálido. Perguntei se ele avistara alguma coisa, mas, ao contrário de todos nós, ele fechava as cortinas agitado, como se tivesse visto o próprio diabo.
Insisti para que ele falasse, mas apenas o medo dava razão a sua face magra, até que Clara gritou.
Olhamos para ela, que mesmo em pé, aparentava ainda estar dormindo.
Miguel gritou que se afastasse da janela, mas ela parecia sonâmbula.
Aproximei-me e, antes que tocasse em seu braço, suas pálpebras se arregalaram: tinha os olhos completamente brancos e sua boca seca abriu emitindo um grunhido de crápula.
Todos, exceto eu, se afastaram.
Uma das gordas se abaixou no chão, abraçou as pernas e começou a chorar até, finalmente, desmaiar.
Tentei mais uma vez falar com clara, enquanto a outra gorda e Júlio ajudavam a desmaiada. Clara permanecia em um transe sinistro e eu não sabia o que fazer. Foi então que ela balbuciou algo em uma língua estranha e sinistra. Questionei-a sobre o que ela havia falado e ela respondeu em nosso idioma:
- Ela sente fome – o tom emitido por seus lábios era não mais alto que um sussurro.
Acredito que apenas eu podia ouvir
- Ela sempre sente. Ela comerá os seus rostos. Usará vossos olhos para vigiá-los...
- Quem é ela? - questionei-a temerosa.
- Ela é aquela que rasteja nas profundezas.
Ela há muitos séculos abandonou os oceanos.
Comendo homens e mulheres, velhos e crianças, servos e reis.
Ela aguarda o retorno daquele que não está morto e pode jazer eternamente – Clara emitiu um sorriso medonho – Ela é devota dele...
- Quem é Ele?
Clara me olhou com as órbitas brancas e sussurrou algo que, naquele momento, me pareceu sem sentido.
Ela caiu e eu a segurei.
Miguel queria saber o que ela tinha dito, mas eu não sabia dizer ou imaginava ter ouvido algo que não entendera – mas, por Deus, eu já havia entendido, só não sabia ainda.
Jonatas saiu do lado de sua esposa, que retornara a histeria, gritando que havia alguém lá fora: era o sujeito de boné que se fingira ser motorista e nos trouxera até ali.
Eufórico, ele gritava enlouquecido.
Clara acordou, seus olhos estavam lindamente azuis e tinham um brilho celeste que esbanjava simpatia e inocência.
Naturalmente, ela não se lembrava de nada.
Estivera inconsciente e despertara, agora, como um recém-nascido.
Miguel saiu enfurecido do ônibus, eu o seguira com os homens.
Seguimos para fora do ônibus e, em meio ao mato iluminado apenas pelos faróis do veículo, estava o homem que nos levara até ali. Estávamos enfurecidos, mas a atmosfera de terror causada pela morte do motorista e o recente estado inconsciente e catatônico da adolescente, tornava-nos reféns do medo.
O homem deu dois passos, olhou diretamente para mim e sorriu. Miguel, irritado, se preparou para um embate, mas mantive a razão e o contive, com um leve toque no ombro. Mesmo sendo a única mulher lá fora e, ainda que possuísse a menor estatura, adiantei-me a frente e encarei-o destemida.
- O que tu queres de nós? – iniciei o dialogo buscando calma – Tu mataste o motorista?
- Não! Não o matei – ele levou à mão a boca e tentou segurar o riso, que assim mesmo transpareceu para nós algo maroto.
Ele tinha um sotaque estranho, inicialmente imaginei que fosse lusitano, mas assim que prosseguiu me pareceu alguém que aprendera um idioma barroco e muito antigo – Eu sou apenas o arauto daquele que vos persegue em seus temores mais secretos – ele ria novamente.
- Quem é que nos persegue? – firmei a voz e cerrei os punhos.
- Ele tem muitos nomes, muitas formas e muitos séculos.
Mas apenas um objetivo – algo além do alcance das luzes grunhiu, seguido por centenas de lamentos.
- Se alimentar. Ele não morre, pois nesta era até mesmo a morte pode morrer – ele olhou para trás e, do meio do mato, pude entendê-lo.
Qualquer razão e sanidade existentes se esvaíram de minha mente.
Um vulto escuro cercou a frente do ônibus e todos correram para dentro.
Eu não queria acreditar nos meus olhos e, então, só consegui corri até Clara, chamando-a exaltada.
Ouvia Miguel gritando: - Vocês viram todos aqueles olhos? – Eu não respondia, só apressava Clara e a puxava pelo pulso: - Que era aquilo? Aquilo não pode ser de Deus! – gritara Jonatas para Eveline. – Corri para fora do ônibus arrastando Clara.
Júlio gritou para que eu voltasse. Instintivamente, ela tentava se desvencilhar de minhas mãos.
- Clara não podemos ficar aqui!
Os olhos dela se encheram de lágrimas e ela concordou com um aceno de cabeça. Corremos por trás do veículo quando ouvi as portas se cerrarem por dentro e, talvez por uma tentativa desesperada deles, as luzes se apagaram. Liguei o aplicativo de lanterna do meu celular e corremos mato adentro até encontrarmos o sujeito estranho.
Havia mais pessoas com ele, uma legião de seguidores: homens, mulheres, jovens, velhos e algumas figuras estranhas com rostos queimados e outros deformados.
- Não podem escapar.
Somos todos prometidos de sua fome – falava ele, enigmático.
Os demais gritaram palavras estranhas, semelhantes àquelas reproduzidas por Clara durante seu transe.
Puxei-a para junto de mim e corremos, mas eles não nos seguiram, foram em direção ao ônibus.
Corremos, caímos e nos arrastamos por espinhos, rochas, buracos e lama.
Tinha perdido a noção do tempo e o cansaço nos dominara.
Descemos um barranco e sentamos no chão, exauridas pela fuga.
A lua brilhava no céu e não havia uma única nuvem, apenas um manto estrelar.
Falei para Clara descansar, pois logo amanheceria e então procuraríamos a estrada com mais facilidade.
Não demorou muito para que eu pegasse no sono – o que, para mim, ainda é um mistério.
Depois daquilo que vi em frente ao ônibus, esta fora a última vez em que dormi e a única em que não deveria ter adormecido – até hoje necessito ingerir drogas para dormir e ainda assim acabo perdendo o sono após meus pesadelos.
Mas naquela noite eu dormi: e como me arrependo.
Acordei ao amanhecer.
Logo percebi que não estávamos sozinhas: à minha frente havia um corpo gigantesco, reptiliano, de comprimento abissal.
Movia-se vagarosamente frente com escamas negras levemente brilhantes e semitransparentes.
Parecia uma serpente com uma grossura gigantesca, capaz de engolir uma cabeça inteira em uma abocanhada.
Tinha divisórias largas, como gomos, que lembravam uma centopeia.
O brilho se intensificou, pude ver luzes diversas cores no corpo.
Eram irregulares, diversas e sinistras.
Um desses brilhos se voltou para mim, amontoado a pele transparente, e me encarou emitindo um mugido: eram olhos e o que sobrou do rosto de uma vaca.
Eram milhares de olhos e rostos.
E não eram apenas de vacas, havia outros animais e, enfim, vi pessoas.
Eles se deslocavam a minha frente como vagões de trem em um cruzamento.
Eu estava estática, não tinha força ou coragem para sair correndo.
O horror me dominava e o medo me mantinha imóvel.
Todos aqueles olhos cruzaram minha frente até finalmente ver um em especial: um par de olhos azuis celestes cheios de brilho e sonhos. Joviais e inocentes, num rosto narigudo e adolescente.
Eles me encaravam com desespero, sem esperança e clamando por socorro.
Tateei ao meu lado até encontrar a mão de Clara para que saíssemos dali.
Sua mão estava gélida.
Olhei novamente para os olhos celestes, que seguiram o curso dos demais, e agora os vira entrando na terra.
Percebi que aquilo não era um barranco e sim o início de uma toca colossal, a qual abrigava aquela criatura medonha.
Puxei Clara para fugirmos logo e ela não reagiu.
Olhei para ela e, no momento em que seu rosto se virou para mim, não havia rosto.
Não havia mais nada.
Apenas o buraco do seu crânio sem rosto ou cérebro e tudo que deveria estar ali.
Acordei sedada em uma cama de hospital em Porto Alegre.
Soube do acidente, das pessoas desaparecidas e nada mais.
E é melhor assim.
As vezes a ignorância é a única proteção para nossa sanidade.