06 agosto, 2015

Creepypasta: Dentro de nós

Quando conheci minha esposa na faculdade, mal podia imaginar que viveríamos juntos para sempre, teríamos uma família, uma casa, um cachorro... Enfim, uma vida perfeita juntos. Eu não queria uma vida perfeita. Só queria uma vida normal. Às vezes tinha a sensação de que quando tudo está perfeito, é um presságio sobre algo ruim. Eu não queria ver o mundo assim, mas era um pensamento. Um maldito pensamento que se negava sair da minha mente. Minha preocupação se confirmou quando nosso filho menor teve de ser internado.
Não sei por que demoramos tanto a perceber. Vômitos, desmaios, fraqueza. Lembro até hoje do médico saindo lentamente, meio constrangido, da sala de tomografia onde meu filho estava. Ele se aproximou, com um olhar aparentemente confortador e nos deu a notícia. O tumor que consumia o cérebro de meu filho era do tamanho de uma uva. A princípio pode parecer até pequeno, mas acredite, pode causar um belo estrago.

Nós não éramos uma família rica, mas também não éramos tão pobres assim. O tratamento dele ia ser caro, mas não íamos desistir. Vendemos carros, móveis, hipotecamos a casa, e a cada visita, meu pequeno Caio parecia cada vez mais frágil. Seus cabelos castanhos já haviam ido embora faz tempo. Sua pele seca parecia tão sensível. Seu olhar meio fechado, quase implorando "Papai, não me deixe morrer nessa cama!". Gastei todas minhas forças, meu último suspiro eu daria pela vida de Caio. E ainda assim, de certa forma, me sentia tão impotente. Sentia-me tão fraco. Tão inútil.

Foram dois anos. A quimioterapia deteriorava o corpo de meu pequeno a cada dia. O câncer regredia, mas antes que pudéssemos comemorar descobríamos que ele havia arranjado uma forma de nos driblar. Era como se a doença de meu filho houvesse se personificado. Eu me referia ao tumor como "Ele". Ele não iria tirar minha criança. Ele não podia ser mais forte que eu. Eu precisava acabar com ele. O estado de minha sanidade mental diminuía junto com a imunidade de meu filho. Uma equação simples que destruiu minha mente; a situação de meu filho, mais a responsabilidade de ainda cuidar de casa e de nosso outro filho maior, mais a condição de pobreza que ficamos por gastar todo o dinheiro com o tratamento de Caio, mais minha esposa cada vez mais triste e distante de mim, multiplicado pelo sentimento de culpa. Eu não estava me doando o suficiente para resolver tudo isso.

Era o fim. Eu não podia mais viver. Não havia mais lágrimas em mim, todas haviam sido derramadas sobre o corpo gelado de meu filho. "Ele" venceu, suspirei. Levou meu filho que tanto amei. Não importava quantos doutores ou seguranças me puxassem, nada me faria largar aquele corpo franzino que um dia foi meu pequeno Caio. Mal sabia como contar para minha esposa, ou para nosso filho. Me ver caído, em pedaços ao chão não era como Caio gostaria de me ver. Ele tinha uma imagem de super pai de mim. "Eu sei que vai me tirar dessa, paizão", foram suas últimas palavras à mim três dias antes.

Voltei para casa. Arrumei cada cômodo. Lavei a louça. Pus a água pra esquentar. Aspirei cada canto, me livrei do pó. Ao entardecer, eu apenas aguardava minha esposa e meu filho; com a casa limpa, arrumada e o jantar feito. De mãos dadas eles entraram pela porta da frente. Foram dez anos de casamento, ela conhecia cada expressão que estivesse no meu rosto. Sabia que algo não estava bem. Antes que pudesse falar qualquer coisa, nossas lágrimas escorreram simultaneamente. Ela já tinha entendido o que ocorrera. Passamos horas, abraçados, chorando, como nosso filho ao lado, apenas nos observando. "Arrumei a casa e preparei o jantar", soltei involuntariamente. Ainda tínhamos um filho, não podíamos nos deixar abalar e esquecê-lo. Com uma troca de olhares, concordamos em explicar a situação apenas no outro dia para ele.

Um silêncio mutilador consumia o jantar. Nosso filho comia a sopa enquanto eu e minha esposa apenas nos encarávamos desolados. "Preciso vê-lo", minha esposa não aguentou e sussurrou. Para confortá-la respondi "Ele sempre vai estar aqui meu amor, dentro de nós".

Ainda não entendi porque me internaram nesse lugar. Eu vejo essas pessoas de branco andando por toda parte, completamente fora de si. Não consigo aceitar que me trancaram aqui como se fosse um desses loucos. Não sei se foi porque não consegui salvar a vida de meu filho, porque não fui um bom marido, ou talvez por causa do ingrediente principal daquela sopa ser o meu pequeno Caio. Mesmo que seja eu não me importo. Agora eu tenho a certeza de que Caio sempre estará aqui, dentro de mim, e da minha família.