- Querido, tem alguém na casa.
Ao som trêmulo deste sussurro, o doutor foi tirado de seu profundo sono. Sentiu uma pontada rápida de impaciência pelo incômodo, mas foi logo invadido pela surpresa. Havia alguém na casa? Como assim?
Mexeu-se na cama, causando alguns estalidos na velha armação de madeira. Parou subitamente ao som que produzira, amplificado pelo silêncio da noite. Ora, se havia intrusos na casa, devia fazer silêncio. Pegou os óculos na cabeceira, fixou o olhar no rádio-relógio: 1h30.
Aguçou os ouvidos para tentar captar algum ruído que entregasse a presença do invasor. Acalmou a respiração para que pudesse ouvir o mínimo barulho não familiar e, ao estabilizar o fluxo de entrada e saída de ar em seus pulmões, pôde escutar alguns murmúrios e sinais de atividade bem sutis. Seu coração acelerou, a respiração tornou-se mais frequente e uma sensação de desespero começou a tomar forma em sua mente. Fechou os olhos e tentou se concentrar. Sabia que em momentos de estresse, o melhor era tentar manter a calma na busca pela melhor solução.
Pensou em chamar a polícia. Não... O maldito celular estava dentro do carro. O telefone fixo não tinha extensão em seu quarto, e sua esposa estava com o número do celular inativo já há muito tempo.
O que fazer? E se forem bandidos armados? Não se pode mais ter nada hoje em dia... Um homem que trabalha duro após anos e mais anos de estudo e dedicação ao ofício da medicina, logo menos despertaria a cobiça de algum safado, preguiçoso ladrão.
Ficar parado não seria a melhor opção. Se forem bandidos minimamente espertos e um tanto mais corajosos, irão pensar que as maiores riquezas podem estar no quarto, em uma carteira ou num cofre, talvez. Pensou em sair do quarto... Tinha de ter uma arma em suas mãos. Não tinha arma de fogo, mas tinha uma pesada bengala de madeira de lei que fora de seu pai. Com certeza ela faria algum estrago na cabeça de qualquer gatuno.
Levantou-se da cama com o máximo cuidado... Sua esposa estava paralisada, não emitia som algum. Devia estar aterrorizada. Caminhou descalço pelo carpete do quarto escuro, iluminado levemente de vermelho pelos números de led do rádio-relógio, que agora marcava: 1h34. Tirou a bengala do suporte em que ficava exposta na parede e se encaminhou para a saída do quarto. Pousou o ouvido na porta, podia ouvir mais claramente os passos e murmúrios dos bandidos. Sim: dos bandidos. Provavelmente, pelos seus passos, não mais que dois. Covardes... Nunca vêm sozinhos, sempre tem de ter um parceiro para dar cobertura. Contra quem? Velhos indefesos? Senhoras apavoradas? Ah, esses moleques iam ver só do que ele era feito... Ah, iam.
Sentiu um calor de adrenalina subir à cabeça, encheu-se de coragem. Destrancou a porta, girou a maçaneta. O lado de fora do quarto estava um pouco mais claro pela mistura das luzes da rua e da lua que entravam pelas janelas, filtradas levemente pelas cortinas e refletidas nas paredes. Podia ouvir somente o zumbido da geladeira na cozinha, o tique-taque do velho relógio de pêndulo da família e alguns sons dos invasores. Nada mais. Na vizinhança, um silêncio sepulcral.
Encostou a porta com máximo cuidado, e parou após o estalido da maçaneta. Ah, essa maçaneta miserável... Precisava denunciar seu dono justamente neste momento? Parou por um instante para perceber se havia sido notado: aparentemente não.
O chão da casa era totalmente acarpetado, o que facilitava ao velho médico caminhar em silêncio. Foi pelo corredor dos quartos calculando calmamente seus passos, sem apressar-se muito. Precisava usar da cautela para que não fosse surpreendido em nenhum momento. Parou encostado na parede que fazia a curva para o banheiro e a escada. Mais uma vez, fixou sua audição na direção de onde os ruídos vinham, e sua intuição lhe dizia que estavam na sala. Refletiu sobre uma estratégia de ataque, mas se apercebeu de que não tinha nenhuma. A confiança subitamente o abandonava ao passo em que ele tentava buscar uma resposta à questão: como atacá-los sem se ferir? Mas, enquanto vacilava, ouviu leves passos na escada.
Seu coração acelerou; eles iam dar de cara com ele. Ora, correr de volta para o quarto já não mais seria possível, ele denunciaria sua posição com o tropel que causaria. Tomou coragem enquanto os passos se aproximavam do topo da escada, e chegou a uma conclusão: ia tentar arremessar os bandidos pelos degraus abaixo sob pesadas bengaladas.
Assim que ouviu o último passo no patamar do piso em que estava, dobrou rapidamente a curva da parede que dava de frente para a escada com a bengala em riste, pronta para fender a fronte do desgraçado que ousou violar a santidade do seu recanto. Depois se explicaria para a polícia, quando eles viessem recolher os cacos daqueles malditos.
Ao dar para o patamar da escada, estacou estupefato. À sua frente, uma sombra estava parada, porém nada mais parecia ser do que somente isto – uma sombra. Não era um corpo físico, palpável, real. Apenas uma silhueta de contornos humanos. Vazia de solidez, mas repleta de escuridão. Aquela presença era composta de um negrume denso como o de uma profunda fenda, tão denso que dela parecia emanar alguma força sobrenatural que o invadiu em puro terror e desespero. Nunca antes em sua vida inteira sentira tanto pavor; e não era normal, por mais que a situação fosse tensa, aquele medo todo não vinha somente dele. A sombra à sua frente causava isto de alguma forma. Contemplá-la era como estar à beira de um abismo, pronto para o suicídio.
Sua vista turvou, a cabeça pesou e o desespero fraquejou suas pernas, inclinando-o em queda sobre a sombra. Na queda, perdeu os sentidos por um pequeno instante, ironicamente recobrando-os enquanto rolava as escadas, sentindo todas as pancadas e escoriações do desabalado acidente. Seu corpo estava inteiramente mole pelo torpor que sentiu, causado pela estranha presença, não oferecendo qualquer resistência à queda.
No último degrau, bateu violentamente com a cabeça na parede, emitindo um grunhido com gosto de sangue. Seu corpo inteiro doía, sentia que alguns dentes foram perdidos nos degraus e suas costelas deviam ter sofrido uma tremenda fratura. Tentou se levantar, mas o corpo não respondeu. Sua cabeça latejava. Olhou para o topo da escada, e nada mais havia lá.
Respirou fundo e tossiu; sentia gosto de sangue. O acidente foi severo. Tentou gritar, mas a voz não lhe saía. Apenas gemidos incompreensíveis saiam de sua boca semicerrada. Seria aquele o seu fim?
Ouviu um barulho próximo dele, ao lado. Virou os olhos para aquela direção, e a tal sombra mais uma vez estava lá, imóvel, voltada para si. Apavorado, fechou os olhos e tentou mais uma vez se levantar, mas sem sucesso. Ele inteiro era pura dor... Permaneceu caído em uma posição esdrúxula e em silêncio, e assim acabou por divisar melhor os ruídos que vinham daquilo que ele imaginou serem ladrões, mas que na realidade era a sombra cuja natureza ele não podia compreender: era um murmúrio ofegante, abafado, mas estranhamente familiar...
Oprimiu a memória para reconhecer onde ouvira este som. Ora, de onde seria...? Sim! Com algum esforço reconheceu o que era; um garotinho de cinco anos com diagnóstico provável de meningite, pobrezinho, sabe-se lá por quem trazido ao pronto-socorro em que dava plantão por volta de duas semanas atrás. O menino estava sozinho e quase inconsciente, numa maca no corredor do hospital lotado, murmurando alguma coisa entre sua respiração ofegante e apressada. Naquele dia, o médico estava no fim de seu exaustivo plantão, tremendamente estressado. Pediu ao enfermeiro que aplicasse um analgésico no menino e que repassasse o caso ao próximo plantonista, pois naquele dia ele não queria sair atrasado.
Puxa vida, um homem tem direito a um dia ruim? Ou não? Ele era somente um homem, nada mais.
Mas, sem querer, decretara a sentença de morte do garoto. O próximo plantonista atrasou-se, e apenas constatou o óbito do menino.
O peso dos anos de ofício médico era nocivo para ele; não conseguira se emocionar. E não refletiu a respeito. Era somente mais um caso de óbito entre tantos outros, em que suas possibilidades eram limitadas pela precariedade em que exercia sua profissão, ou pela precariedade de sua condição psicológica.
Arrependeu-se, mas já era tarde demais. Sabia que, por causa de sua omissão, aquela era a sua hora, e seu destino não seria nada bom. Era um desgraçado. Pensou em sua esposa, sentiu sua falta. Cadê a velha, que não veio ver o que lhe ocorreu? Estava em uma situação deplorável, precisava de ajuda...
Não...
Ele era viúvo. Já há mais de um ano.
E estava sozinho na casa. Bom, agora não mais.
Fora acordado por um devaneio, ou seria o fantasma de sua esposa um partícipe na trama pela sua morte?
OK, ele nunca fora um bom marido... Sempre cobrou um filho de sua estéril esposa, e ele nunca a deixou esquecer sua decepção. A mulher fora triste a vida inteira, depressiva... Até que um câncer a levou após anos de muito sofrimento, em que ele pouco ajudou ou apoiou.
E agora, ali, destruído por um acidente, chegou à conclusão de que aquela seria sua derradeira noite. A morte do pobre rapazinho foi a gota d'água que transbordou o copo cheio de omissões e egoísmo que foi a sua vida, tanto pessoal quanto profissional. No fundo, ele merecia aquilo. Se esta pena fosse sobre outra pessoa, ele diria que foi bem feito. Sentiu-se o pior homem da história, sua vida inteira foi uma farsa. Como médico, salvou algumas vidas, mas poderia ter feito mais. Tornou-se insensível ao sofrimento alheio, envelheceu, esfriou. Agora, receberia sua paga.
Olhou para a sombra que velava sua lenta morte. Sentia aos poucos a vida sair de si, e o terror que sentia ia se transformando em resignação. Estava entregando sua vida às mãos da morte negra que estava ao seu lado.
Porém, ela não lhe deu o golpe de misericórdia como ele imaginou. Apenas ficou ali, imóvel, provavelmente observando a lenta agonia de sua vítima. Se era um anjo justiceiro ou um sádico demônio, ele não sabia.
Mas ele ia saber o que era o verdadeiro sofrimento somente após algumas horas. Ao amanhecer, estava morto. Livre de seu corpo finito, porém acorrentado ao que viria depois.
Sua alma foi carregada pela sombra, levada em incrível temor e pânico a um abismo tão escuro quanto o que compunha a matéria de seu algoz. Seu destino eterno estava selado. Sua desgraça não teria mais fim.
Por Eudes de Pádua Colodino